17 agosto, 2010

Ruy Duarte de Carvalho - Sinfonia do Novo Mundo

“Desembarquei pois em Moçamedes, fixei calendários com os chantres da sociedade civil, preparei o jipe e larguei, naturalmente para o mato. Acompanhado pelo meu assistente Paulino e pelo seu sobrinho Gregório,…”
“Adoptámos a rota do Pico do Azevedo, como te proponho agora, porque embora fique mais curto o caminho pelo Caraculo, virando aí à direita e passando pela Viganjanganja, o meu deserto, desde a infância, é o que passa ao lado da Damba e do Scott, atinge o Morro Negro, galga as Pedras-Salvadoras e se desdobra em estepes até aos Paralelos, Vitumba, Delfina, Kanehuia. E eu vinha cheio de falta daquilo.”
“Encostámos ,como é costume ao que resta das instalações dos fiscais de caça, …”
“Dessas actuais ruínas, paredes só cravejadas por tiros assestados às pinturas de animais que decoravam as varandas, vê-se, ligeiramente abaixo e as uns quatrocentos metros, o tal Pico do Azevedo. “
“É este um local, sobretudo um horizonte, circular perfeito assim, em que inscrevo desde sempre uma boa parte da minha ficção pessoal… É tudo horizontal e extenso, rasgado, desdobrado em rasgos de visão, é a paisagem que conduz o olhar e há uma leitura só, possível, para uma largueza assim tamanha, tal dimensão alargada: largar o olhar pela esteira oblíqua dos ocres que se cruzam vastos, rasteiros, velozes, sem fim nem começo, uns derramados de outros, depois soltos, a renovar matizes ao sabor do vento. É por assim dizer o umbigo do mundo, para mim, ali. Sento-me lá e decreto o silêncio, fico a ouvir só, a escutar o vento …”
“Trazia na bagagem (…) um leitor de CD’s, duas pequenas caixas de amplificação, as pilhas necessárias e a nona sinfonia de Dvorjak, a que é dita, isso mesmo, do Novo Mundo.”


“De projectos que se urdem mas não é para cumprir, do meu arsenal consta um longo poema para desenvolver paralelo a esta sinfonia. Ao primeiro acorde do primeiro andamento corresponde o acordar do poeta no meio de tal paisagem, naquela exacta encosta. O poeta acorda, possui-se do que vê. As frases musicais constituem-se como referências sólidas, concretas, palpáveis, volumes, acidentes, aquela pedra que eu sei que guarda água, ao longe aquele declive que eu sei que leva ao sal, aquela escassa sombra que me abrigou na infância, essa remota dobra, na distância, que me ensinou a desdobrar o ser , a experimentar sem estar, ubíquo, perdido para o mundo do tino comum. Sei tudo de cor pela sinfonia fora, servido à toa pela mais completa e árida incultura musical, e falta de ouvido e tudo, mas sei exactamente quando, em que preciso som, de tal décor emerge algum pastor vagante, que avança para mim e depois me conduz já dali para a frente para fazer-me ouvir, entre os seus e o seu gado, e à beira do seu fogo, todo o derrame do segundo andamento, a torrente morosa da história a revelar-se, memórias, migrações, pastagens alcançadas após longas viagens, percursos seculares, milenares até, rumos traçados por gerações há muito extintas, legados os destinos ao tempo que há-de vir. Um largo sem margens. Donde se acorda para o sherzo, molto vivace, de um quotidiano animado pelo verde recente dos pastos refeitos e pela urgência viril das transumâncias. Finalmente a monumentalidade do allegro com fuoco, Paramount Films, Califórnia SA e avante Miguel Strogoff.”

CARVALHO, Ruy Duarte , “Vou lá Visitar Pastores” Ed. Cotovia, 2000. Pág. 104 a 107.

13 agosto, 2010

Ruy Duarte de Carvalho: morreu um homem ímpar.


Morreu um grande angolano que Portugal deu ao Mundo. Antropólogo, escritor,cineasta, viajante Ruy Duarte de Carvalho é uma figura ímpar da cultura africana de língua portuguesa. Morreu em Swakopmumd na Namíbia, para onde se tinha refugiado nos últimos anos talvez para estar mais perto do seu verdadeiro mundo, das gentes do deserto e daquela cultura africana que ele sentia estar a morrer ano após ano de forma inexorável.
Adeus Ruy. Nós, através de ti, continuaremos a ir lá visitar pastores, esses mucubais altivos que desde sempre te fascinaram, esses mucubais insubmissos que, provavelmente, em breve seguirão as tuas pegadas...

SEXTA-FEIRA, DIA 13

O número 13 de má fama e objeto de tantos receios e superstições deve em parte a sua reputação por ser um número que desfaz o equilíbrio do ...