11 janeiro, 2023

FÁTIMA SABE BEM

 

Terceiro dia de janeiro de 2023.

O dia está ameno, não chove, o sol espreita e o vento está recolhido. No grande recinto, entre a antiga Basílica de Nossa Senhora do Rosário e a moderna Basílica da Santíssima Trindade, deambulam crentes e turistas. Provavelmente mais turistas. Alguns em grupo, mas mais pares. Outros vagueiam solitários. Existe, naquele espaço imenso e despido, um estranho afastamento entre estranhos. O vasto recinto de oração, sob o olhar sofredor do Cristo estilizado e oxidado, contemporâneo da nova Basílica, e o Sagrado Coração de Jesus em bronze dourado, é um deambulatório sereno e agradável.


Fátima é uma Babel de línguas e culturas, atestando a universalidade do culto mariano. Um pouco por todo o lado vêm-se trajos de outras latitudes e ouvem-se diferentes línguas, umas mais familiares, (espanhol, francês, inglês...) outras mais singulares e exóticas, com sonoridades asiáticas e do leste europeu. O português colorido e exuberante do Brasil é omnipresente. Português de cá também se vai ouvindo, mas menos, não por falta de crentes nacionais, mas pela nossa endémica circunspeção e sobriedade quando em presença de estranhos.



Àquela hora, no entanto, dois locais salientam-se pela aglomeração de pessoas: a Capelinha das Aparições e o tocheiro com o crematório das velas.

O tocheiro é o local mais popular do santuário. Queimam-se velas de promessas por graças recebidas ou pedidas. É popular no sentido de informalidade e comunidade. As pessoas falam com outras sem baixar a voz, encostam-se e avançam na fila das velas ardentes, sob o cheiro enjoativo da cera queimada e o ardor do fumo ininterrupto. No início está o crematório onde, à entrada, numa placa, a Reitoria do Santuário, informa:

“Impossível queimar dignamente todas as velas no tocheiro.

Acenda uma vela só.

Coloque as restantes na pira.

A sua promessa fica cumprida.”

Pode-se ir carregado de promessas e, afinal, uma só vela basta para as cumprir. Faz sentido. Todas as promessas e desejos da vida de uma pessoa, quando reunidos, podem transformar-se numa única grande promessa e num único grande desejo.



A escassos metros encontra-se a Capelinha das Aparições, local primordial da sacralidade de Fátima. A modesta capela, com a Senhora em frente, está disfarçada sob uma enorme estrutura rodeada de painéis de vidro, que a protege e aos crentes, das intempéries que Deus manda. Neste sítio reza-se o terço e ouvem-se missas, em geral dadas por padres poliglotas.

O recinto está repleto de crentes sentados ou em pé, pois decorre a missa da manhã. Quando esta acaba, os lugares desocupados dão lugar a outros crentes ou meros visitantes, para rezarem o terço, meditarem ou apenas para descansarem.

Alguns dos que deambulam aproximam-se da Capelinha. O semblante muda conforme a distância diminui. O rosto curioso e alegre vai-se fechando, acabaram-se os sorrisos, e quando se perfilam em frente do altar, já estão em posse de meditação com a cabeça descaída e os olhos vagamente para a frente e para baixo. A religiosidade do lugar impõe recato e circunspeção.

Mas, é de fora que a Capelinha e a sua proteção ganham beleza cinematográfica. Deslocamo-nos e vemos sob diversos ângulos, refletidos nas grandes paredes de vidro, a Basílica de Nossa Senhora do Rosário; as colunatas clássicas; a velha azinheira presa num recinto gradeado e fechado a cadeado; as nuvens e o céu. É um dos sítios mais reconfortantes e apaziguadores de todo o exterior do Santuário.




Descendo o terreiro ligeiramente inclinado da Basílica antiga para a Capelinha, duas mulheres e três homens, alegres e ruidosos, empurram, ou seguram, uma cadeira de rodas com uma senhora de cabelos já grisalhos. A cadeira pára a um sinal da sua utente, que ordena aos cinco que se agrupem atrás dela. Estava na hora da selfie com a basílica em fundo. A montagem demora. Mais para a direita, mais para a esquerda...e o quinteto obedece. Como estão a tapar o fundo basilical mais as elegantes colunatas, alguns dos figurantes baixam-se em meia genuflexão e outros têm mesmo de se ajoelhar. A senhora grisalha, de braço estendido, fixa, no telemóvel, meia dúzia ou mais de imagens, em conformidade com a lei das selfies, porque há sempre umas melhores que outras. Olhando para o quadro penso que, afinal, nem só para rezar a Nossa Senhora se ajoelha em Fátima. Os modernos deuses também têm as suas exigências.

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Crente ou não, Fátima sabe bem. Talvez porque esteja ali um pouco desse imenso universo, interior e terreno, de que todos fazemos parte.

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